domingo, 12 de abril de 2015

A morada escura dos não aceitados

A morada escura dos não aceitados


Quiçá haja que tomar nota e pôr-se à fila, coa posição exata, no lugar adequado, para que che deem palmadinhas no ombreiro  e assim conseguir  aparecer  de soslaio, ser visível...
Mas apesar de viver a contraluz, fora de ambientes escolhidos, ser mulher, pobre, classe trabalhadora e carecer de contactos interessantes, acordo cada manhã com a ilusão de uma incauta refletida na face. Não obstante, bem sei, tenho a certeza da desigualdade atroz que me bate nas costas e me eiva. Contudo, em ocasiões deixo-me afetar por um estado de onirismo conveniente.
Nasci com a perspetiva difusa, em preto e branco; irredenta, afogada pelo jugo do velho ditador. Medrei num esperpéntico cenário e acoplei-me à vida com a cegueira própria duma mulher treinada para o sacrifício. Ainda que, às vezes confabulava estratégias para sair do cárcere da estereotipia e nesses momentos sentia a brisa acariciadora duma esperança mole que me beijava no ouvido, mas a sensação era tão efémera que apenas deixava um insignificante resquício na minha pele e alertavam injustiças, bombardeando às  urpreendidas ruas com palavras idóneas, preparadas expressamente para a tirania.
Quando volvo a vista  atrás e reflexiono, compreendo que a situação não mudou muito. O tempo não é garantia de evolução. As coisas modificam-se só quando existe verdadeira consciência de mudança. O nosso amanhecer continua a ter esse tom cinza herdado de ontem, camuflado por detrás dumas siglas. Algumas, presumem de igualitárias, justas, mas, estranhamente a cultura e nomeada e escolhida a dedo. Autodenominam-se donos do Olimpo! Fora dos seus valados não existe nada, tudo vazio. Eles dominam a cultura! Não há espaço livre nos seus domínios,  nas cidades. E  eu fujo das siglas, como se se tratasse dum mal de olho. Um carro de alta gama interceta-me por detrás, derruba-me sobre a calçada fendida. A morada escura dos não aceitados.

A força do poder crunha-se com a dureza do ferro.

(Publicado em Elipse núm. 2, fevereiro de 2014)

Cruz Martínez Vilas (Galiza)
Fundadora de Penúltimo Acto (Acción Poética). Organizadora do ato Círculo Poético Aberto no Café Uf (Vigo). Pertence á Junta Diretiva da Asociación Cultural O Castro de Vigo. Publicou os livros Espelho de mim mesma (Círculo Edições, 2014) e Xerografia em branco e negro (Corpos Editora/Poesia Fã Clube, 2014).
Ganhou, entre outros, o primeiro premio no XXII Certame de Poesía en Lingua Galega Rosalía de Castro, com o poemário Amante tocada pola antropofaxia em 2008, o XXVI Poesía en Lingua Galega Rosalía de Castro, com o poemário Contemplo o proceso inevitábel da despedida em 2012 e o II Certame de Poesía em Língua Galega Manuel María com o poemário O lánguido ocaso dunha dalia. Blog pessoal: No ollar dun bufo verde.
http://noollardunbufoverde.blogspot.com.es/

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