domingo, 8 de novembro de 2015

António Ramos Rosa

António Ramos Rosa (1924-2013)


De todos os títulos que se podem dar a um livro no qual se queira condensar uma obra, o_mais bizarro é, sem dúvida, o de «Obra(s) Completa(s)». Funéreo por antecipação, ou necrológico quando é o caso de arrumar de vez com o assunto, esse título deveria ser banido em definitivo.
Dos muitos autores – e suas obras -, que se podem convocar em defesa desta opinião, António Ramos Rosa é, indiscutivelmente, dos mais representativos. Nome maior da nossa contemporânea poesia, a sua produção literária contrariou sempre, na sua inesgotabilidade, qualquer veleidade de a fixar num definitivo fechamento, antológico ou “completo”. Com uma produção que ultrapassa os setenta títulos – da poesia ao ensaio (“textos críticos”, como gostava de os designar), a aventura poética de Ramos Rosa consistiu, como poucas, num incessante exercício, na e pela palavra, de restituição dos equilíbrios que a existência, no que em si tem de estritamente mundano, sempre acaba por quebrar: de si a si, aos outros e_ao_mundo. Por isso, Ramos Rosa insistia em convocar o_Real, não a realidade. A realidade é sempre enumerável nas coisas que comporta e, por mais árdua que seja a tarefa, é possível conceber-lhe um fim, um acabamento; enquanto que o que no Real importa é o que nele resiste a deixar-se apropriar pela linguagem, encerrando-se num arrolamento de sentidos. Há nisto qualquer coisa que a mística – ou a_erótica - gosta de associar ao silêncio, a uma ausência em cuja plenitude a palavra se confronta, sabendo-se destinada ao_fracasso. Consciente desta insuficiência, a poesia de_Ramos Rosa soube instaurar, nas palavras do seu dizer poético, uma «pátria soberana». Quer seja o real das coisas, o real do poema ou a_presença real da mulher amada, a sua prolífica produção poética revela – com oscilações, como não podia deixar de ser –, uma crença absoluta no poético como modo privilegiado de aceder a esse real:
 «Sem dizer o fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei
 que as piso – duramente, são pedras e não ervas. O vento é
 fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo
 tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão
 os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho,
 porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo
 caminho e descubro o meu caminho.»

 (Sobre o Rosto da Terra, 1961)
A poesia de António Ramos Rosa assume-se como procura de restituir ao mundo (na e pela linguagem), os equilíbrios primordiais. Esta linguagem de restituição avoca a nudez e_a_pobreza de uma linguagem e vivência austeras, como meio para atingir as poucas coisas necessárias e, por isso, elementares.
Aparição discreta, deflagração serena de uma «maravilha obscura», o poema em António Ramos Rosa apresenta-se sempre como uma absoluta novidade, esquecimento sem memória, pura atenção ao absoluto:
 «cada palavra é um acto com que avanço no escuro
 estou mais perto da terra de uma árvore de uma erva
 e os meus dedos sentem as raízes do obscuro
 Adiro a uma chama insubmissa ao sexo do repouso
 o percurso é uma fábula o desesperado encanto
 de para sempre perdido na maravilha obscura»

 (Ficção, 1984)
A contenção verbal e a condensação de sentido que Ramos Rosa perseguiu desde praticamente o seu primeiro livro, O Grito claro, de 1958, não o arrastou nunca para a_repetição de si mesmo. Muito pelo contrário, de palavras elementares agrupadas em alguns núcleos de sentido, como pedra, vento, espaço, sangue, cinza, sombra, silêncio, etc, a poesia de António Ramos Rosa sempre soube resistir à usura das palavras. É que a_palavra, nesta poesia, toma para si o destino de não se deixar reduzir a um exterior que se sabe inapropriável. Não é que o_estritamente empírico, o social e o psicológico mesmo, não estejam presentes nela. Seria um_exercício por demais fácil –num percurso que atravessou, desde os anos 50, todas as inflexões da poesia portuguesa, nas suas múltiplas manifestações, da social e política à cultural–, encontrar referências a confirmar aquela presença, como coisa a considerar na sua seriedade preocupante. Na produção poética de António Ramos Rosa, o poema não é algo de exterior ao Real, à maneira de acrescento a_remediar falha de sentido, ou ferida a necessitar tratamento. O_poema, com o_gesto pelo qual se faz, quer-se uma pura consonância, em que a questão da_imanência e_da_transcendência, do exterior e do interior, se resolve no interior do poema ele-mesmo:
 «Eu não sei afastar a minha mão da página
 porque não há outro lugar para ela
 ainda que seja o lugar do não lugar
 Eu tenho de segui-la através da penumbra branca
 e ela poderá ser de cal ou de sangue
 ou já a sua própria cinza
 eu vou sempre seguindo-a como se ela conhecesse o seu rumo
 ou fosse escrever o que eu não desejaria escrever»

 (A Imobilidade Fulminante, 1998)

De maneira que, quando um poeta morre, a melhor homenagem que se lhe pode fazer é, pela leitura dos seus poemas – e, no caso de António Ramos Rosa, de maneira particularmente aguda –, sermos efectivamente leitores, isto é, que sejamos tomados pelo êxtase verbal, «liberdade livre», tendo sempre presente que no poema como na vida, o_que há de completo é a sua incompletude, inesgotável:
 «Sobre o seu sono ardente, sobre o seu corpo
 sonoro, esta dança da escrita, esta obscura
 mão. Entre um vaso de sangue e um vaso de cinza
 o poema ergue uma arcada branca. Como a fuga de um pássaro
 a palavra levanta-se dos ombros, o mundo recomeça»

 (Volante Verde, 1980)

Ponta Delgada, Açores, Fevereiro de 2014.

Fernando Martinho Guimarães (Alijó-Vila Real, 1960. Portugal)
De formação filosófica e literária, a sua produção reflecte essa duplicidade. Colaborou em Letras & Letras, revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, no suplemento Artes & Letras do semanário Terra Nostra (Açores), e no jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde). Cronista na Rádio Atlântida e no jornal Correio dos Açores.
Publicou, entre outros, Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português),  em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e, em 2008, Crónicas.
(Públicado em Elipse núm. 3)

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