sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Ethopeia: Domindo no Corpo, de Aurelino Costa ou a poesia como horizonte de eventos

Domingo no Corpo, de Aurelino Costa ou a poesia como horizonte de eventos


Domingo no Corpo é o último livro de poemas de Aurelino Costa (Argivai, Póvoa de Varzim 1956) a vir a lume. Poeta, diseur e actor, Aurelino Costa é autor de uma produção poética que, desde a última década do século passado – a sua primeira publicação em livro, Poesia Solta, data de 1992 –, se vem assumindo como uma das vozes da poesia contemporânea portuguesa com uma densidade refundadora da linguagem, tanto ao nível da imagética, como das virtualidades surpreendentes com que trabalha a língua poética, na sua concisão fónica e semântica, depuradora.

Como diseur, tem emprestado a sua voz em regulares eventos em que a poesia é aclamada e declamada. Assinale-se, a título de exemplo, a sua participação no registo audiográfico comemorativo do centenário do nascimento de José Régio (2001), com música e interpretação do Maestro António Victorino D’Almeida. Ou ainda a sua colaboração, ao nível da narração, em Miguel Cervantes & las Músicas del Quixote, com Hespérion XXI, sob a direção de Jordi Savall (2006).
O poemário Domingo no Corpo chega ao leitor acompanhado de três outos textos que procuram sinalizar a singularidade criativa da poesia nele contida. Um, da autoria de Alexandre Teixeira Mendes que, sob a forma de opúsculo, funciona como prefácio. Os outros dois, de Ondjacki e de Mário Cláudio, fecham o livro, testemunhando, nas palavras do autor de Amadeo, a «originalidade inventiva da poesia» de Aurelino Costa.

Constituído de 28 poemas, Domingo no Corpo revela-nos uma poética de fulgurações corpóreas, quer na matéria da palavra ela-mesma, quer nas coisas e acontecimentos que, por meio da sensibilidade poética, adquirem uma visibilidade que apenas pode ser refractada:
O claro orvalho na língua do fogo
Êmbolo azul num domingo antigo
(«o dia de hoje?», p. 26)

Singularidade é um dos conceitos mais intrigantes da moderna cosmologia. Início e termo de todos os universos, a singularidade corresponderia a um vórtice delirante, em que a matéria fluiria a partir de –e para–, um ponto incomensuravelmente denso. Inacessível a qualquer observador, só nos resta adivinhar o que nele ocorre. Nesse ponto em que as leis da física parecem não se aplicar, toda a visibilidade é interdita. Ponto cego por excesso de luz, nada escapa à sua intensidade gravitacional.

Horizonte de eventos é a designação de que, à falta de melhor, a física actual se socorre para descrever esta nossa resignação. Perseguidos pelo númeno kantiano, o limite que este horizonte de eventos evidencia assemelha-se demasiado ao horizonte – de que apenas descortinamos a linha –, ou à sombra que, por não ser luz, só por esta existe. Não se deixa apanhar mas também não nos abandona. Silêncio, que George Steiner declarou limite da linguagem, ou o indizível, que Wittgenstein convocava à inexorável mudez nossa, sobra o que (também) na linguagem científica é sortilégio poético:
sábias e fátuas as mãos prolongam uma fé intemporal
marcam a focagem dos templos
órgãos param nas veias, fuligem
estonteante e melancólica sobre a leva
hospitalizada a mancha escurece, a cama branca deita-se
ombros de esposa delicada
branca, muito branca, a espera brota
janela deste santuário opaco aguardo me leves com fruto, ave
no mais leve, derrames deixo a figueira, os gatos e um cão
folhas brancas do dormitório
esta pedra sem saber se a voz que escuto é luz ou treva
contemplando as ardósias e o desenho no chão
(«o fim acomete-se às sombras», p. 15)

Surrealizante sem surrealismo, a escrita de Aurelino Costa lança mão de artifícios discursivo-estéticos cujo labor os surrealistas elevaram à condição de culto. Desde o automatismo da escrita, em que os versos aparecem inextricavelmente desligados, ao cúmulo e acúmulo de sentidos que a oposição dos termos pode revelar a escrita de Aurelino Costa procura dar conta do assomo e assombro do mundo e da vida. No entanto, não há aqui um mundo da oníria, em cujos mistérios esforçadamente quiséssemos mergulhar. E escapar. O estado de coisas para que Domingo no Corpo aponta não é surreal, mas sim sobrerreal. São muitos os motivos que, das coisas às pessoas, na sua concreta espessura, atravessam os seus poemas (pedra, mãe, casa, seios, pássaro). Edificada numa consciência aguda da condição vivencial, a um tempo jubilosa e desencantada, a poeticidade da palavra deseja, em muitos dos seus versos, fazer unidade com o que nela, e por ela, é expresso. Melhor ainda: impresso. Fazer unidade quer dizer fazer casa, habitação da vida e da poesia:
estas pedras têm mãos de homens que morreram
mãos de homens que conheci,
mãos de homens que cumprimentei todas as [manhãs
pelas oito horas quando iniciavam os seus [trabalhos estas pedras falam de homens que não morrem,
homens que me acompanham estas pedras têm a luz das estrelas quando noite
e a luz do dia quando as olho
(…)
e eu não resisto a abraça-los dentro de mim
e a chorá-los na ausência dos dias que estas pedras soletram
palavras e lágrimas de tanta saudade
das manhãs em que eu cumprimentava estes [homens
(…)
e eu desejo-os vivos,
nus,
aqui sentados
olhando as pedras
a meu lado.
«pedras com mãos de homens que morreram», pp. 39-40)
Desejo de permanência, compulsão de uma continuidade que o carácter evanescente e efémero das coisas e da vida sempre acaba por desmentir, a poesia de Domingo no Corpo debate-se com a impossibilidade desse paradoxo. O poema (im)possível alimenta-se dessa insuficiência. Nesta fractura, nesta quebra que se dobra sobre si mesma, irrompe a escrita de Aurelino Costa. Não são as palavras que se quebram (ri_queza, re_dor, canta_bílis). Não são apenas as palavras que se quebram. É o mundo e a in-sistência compulsiva de nele fazermos vida –ek-sistência–, que se revelam como dobra, ou zeugma ainda, de um continuum que a língua poética procura restituir. Revelar é, aqui, o verbo que importa. Apocalíptica, no seu ascetismo hiperbólico, nas palavras de Alexandre Teixeira Mendes –será preciso lembrar que «apocalipse» significa, justamente, «revelação»–, a poesia de Aurelino Costa não reproduz, tão-somente, a dobra-sintoma de que o mundo, e nós nele e com ele, padece. Exercício de re-invenção das palavras e de tudo o que nelas cabe, incessante procura da «grande metáfora da purificação», como se pode ler no poema que tem por título «o dissolver» (p. 10), em Domingo no Corpo, a poesia é intrinsecamente demiúrgica. Demoníaca, portanto.
Em Ponta Delgada, Os Açores. 3 de Julho de 2013.


(Publicado em Elipse n.º 1)

Fernando Martinho Guimarães


Nascido transmontano (Alijó, Vila Real. 1960), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófica e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, no suplemento Artes & Letras do semanário Terra Nostra (Açores), passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua         actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. Cronista na Rádio Atlântida e no jornal Correio dos Açores, em Ponta  Delgada.
De entre os portugueses é de destacar a poesia de António Ramos Rosa que foi tema da tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa Contemporânea. Da poesia galega, a sua ensaística tem incidido sobre a poesia de Luisa Villalta (I Jornadas de Letras Galegas de Lisboa, 1998) e a de Manuel António (Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).
Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português),  em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e, em 2008, Crónicas. Participou em 18 - antologia galaico-portuguesa (2011), edição dos autores, pelo Círculo Poético Aberto.


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